terça-feira, 31 de julho de 2012

Ivan Lessa, o filho da pátria


Texto publicado no jornal Ícone - edição de junho - o qual estou disponibilizando agora no blog.

“Três em cada quatro políticos não sabem que país é esse. O quarto acha que é a Suíça.” Com esse humor ácido ficou conhecido o jornalista, cronista e escritor Ivan Lessa, morto aos 77 anos no último dia 8 de junho, em Londres, onde estava em um auto-exílio desde 1978. Lessa era filho dos escritores Origenes e Elsie Lessa, nasceu em São Paulo e foi criado no Rio de Janeiro. Com Ziraldo, Millôr Fernandes, Tarso de Castro e Jaguar, fez parte do grupo que criou o jornal "O Pasquim", em 1969, durante o período mais ferrenho da ditadura militar.

No geral, Lessa era aquele tipo de brasileiro que não poupava esforços para criticar o Brasil por conta de seus infindáveis problemas, grande parte deles gerados pela nossa própria história de uma colonização predadora e ignorante. Para nós, meros espectadores da roubalheira e desorganização do país tupiniquim, as falcatruas dos nossos governantes causavam nauseante mal-estar no escritor que não digeria o pesadelo institucional do Brasil e escrevia três colunas por semana para a BBC Brasil.

Por conta disso, Lessa colecionava inimigos e “pseudopatriotas”, os quais consideravam hipocrisia do jornalista criticar o país a uma distância segura no conforto de Londres. Ledo Engano. Lessa foi, talvez, a figura mais importante ao lado de Millôr (também morto nesse ano) de uma classe intelectual tristemente pouco lembrada pelo povo brasileiro. Tinha seu perfil rabugento, mas nunca deixou de ser um filho da pátria (mas que naturalmente dependia dela para seu próprio trabalho).

O escritor tinha plena adoração pelo Brasil, em especial pelo Rio, onde passou a maior parte da sua infância, no entanto, remetia esses elogios a um passado dourado e elegante da cidade que foi jogada às traças, segundo ele mesmo dizia. Em 2006, depois de 28 anos sem dar as caras no Brasil, Ivan foi convidado pela revista Piauí para fazer um retrato da cidade. “Copacabana, Ipanema, Leblon, Centro, zonas Leste e Oeste, o que quiserem. Curtam o pôr-do-sol, recortem o Corcovado e os Dois Irmãos e botem à venda no eBay. Virá gente. Muita gente. Mas uma vezinha só, ao contrário de Naomi Cambell, que, como se sabe, nasceu e continua assombrando o pobre do bairro de Catumbi. Aqui, no Rio, como poderia escrever o poeta sobre Macau, nada de interessante ou sério aconteceu ou acontecerá.”

Assim, com um potente petardo Ivan desmerecia sem rodeios muitas das nossas idolatradas belezas. Era um sádico, ingrato, mal educado, canastrão? Não, era um sujeito franco que utilizava a inteligência como uma arma de destruição em massa. A nossa massa em particular.

Tinha o sentimento de tragédia e falta de esperança por nós. Povo sem respeito. Será que buscamos padrões de civilizações destroçadas pelas guerras civis e supervisão de caudilhos megalomaníacos?

A partida de Lessa nos deixa mais órfãos. Sem eles, somos criados, burros de carga, cegos ao volante, já que não existe mais ninguém para nos dizer o contrário.

Reuni abaixo algumas das célebres citações do jornalista

“Baiano não dá bandeira. Hasteia.”

“Amar é...Ser a primeira a reconhecer o corpo dele no Instituto Médico Legal.”

“A cada quinze anos, o Brasil se esquece o que aconteceu nos últimos quinze anos”

“Não a motivo algum para sentirmos a vontade no mundo. Os alienígenas somos nós”

“O brasileiro tem que ter os dois pés no chão, e as duas mãos também”

Leonardo Carvalho

terça-feira, 17 de abril de 2012

50 mil vezes Lobão


Há artistas devidamente escorraçados na mídia, que, de tanto criarem polêmicas, caem numa espécie de ostracismo e passam a viver em universos alternativos, o que acaba tornando-os cult. Não sei se João Luíz Woerdenbag Filho, popularmente conhecido como Lobão, se enquadra exatamente nesse perfil, porém, uma das figuras de conceitos mais anarquistas contra as gravadoras em nosso país,tem uma história ácida e elegante em seu livro 50 anos a mil, que quase dois anos depois do burburinho gerado em cima do livro resolvi destrinchá-lo.

Os levianas de plantão que me perdoem, não podem julgar o próprio pela relevância de um dos vídeos mais populares do artista no youtube (quase 300 mil visualizações), onde o público rechaçou a participação da banda do músico a base de garrafadas na noite do metal no Rock in Rio II. Lobão é muito mais que isso.

Num livro de quase 600 páginas, sendo que outras mil foram limadas antes da edição final, feita com o auxílio do jornalista Claudio Tognolli, o qual se encarregou de reunir os fatos publicados na mídia, legitimando assim o discurso do autor, Lobão conta a sua intensa história com a ajuda da memória de amigos célebres, como Cazuza, Evandro Mesquita, Lulu Santos, Julio Barroso, entre outros. Aliás, esse último, serve como abertura do livro, quando ele e Cazuza cheiraram cocaína no caixão durante o velório do amigo falecido, líder do grupo Gang 90 e as Absurdettes.

Os amigos presentes em fotos e em histórias que dão corpo à obra é outro coadjuvante, assim como as bandas pré-carreira solo: Vímana e Blitz, a quem Lobão diz ter batizado, por mais que o cantor Evandro Mesquita não confirme o fato.

Boa parte do livro também tem forte influência da família do músico, em especial a mãe, mulher liberal e quase ao mesmo tempo reacionária na criação dos filhos. Lobão não poupa detalhes dessa relação de amor e ódio que manteve com os pais, desenhando um mundo entre o absurdo e a ternura. A mãe de Lobão sem dúvida ganha destaque pelos acontecimentos surreais para uma época moralista de uma família aristocrata. É de se perder o fôlego em episódios quando ele, junto da irmã mais nova, provam maconha com consenso da mãe, o que acabou gerando a sua expulsão, com total ausência de delicadeza por parte do pai, de casa.

No livro, é fácil imaginar a voz de Lobão narrando os casos, por conta da opção de preservar “léxico e a sintaxe peculiares e autorais" do biografado, segundo nota do editor. Portanto, episódios como o de sua passagem pela cadeia, fuga do Brasil e guerra contra as gravadoras tomam uma vivacidade surpreendente.

Não é natural se aproximar de uma biografia de alguém que te remete mais ao caos que ao próprio trabalho. Contudo, 50 anos a mil tem muito mais que isso. A energia é contagiante vinda de um músico inteligente, criativo e, por vezes, perturbado e neurótico. Um livro necessário para quem aprecia música e história do rock nacional.

terça-feira, 20 de março de 2012

No fundo do Pornô


Tenho o costume de recomendar nessa coluna os mais diversos livros, os que me agradam, naturalmente, no entanto, neste mês vou fazer um bem bolado coma cultura pop (depende do seu ponto de vista) e fazer uma indicação dupla, que vai pegar todos seus amigos fãs de literatura e filmes do Goddard de surpresa. Trata-se do livro Pornô (2002), do escritor escocês Irvine Welsh, celébre por seu primeiro trabalho Trainspotting, o qual em 1996 virou filme nas mãos do premiado diretor Danny Boyle (Quem quer ser um milionário?) e alcançou o status de cult quase imediatamente entre grupos underground. A história, que não poupa polêmicas pelo abuso excessivo de drogas, prostituição e violência fala da vida de um grupo de jovens viciados em heroína, em Edimburgo, na Escócia. Num subúrbio, quatro jovens sem perspectivas mergulham no submundo para manter seu vício pela heroína. Pessoas que utilizam as mais diversas máscaras para manter o vício e marcham inexoravelmente para o fim das amizades e, simultaneamente, para a autodestruição.

Com o burburinho causado pelo livro e o filme, Welsh não perdeu a pegada de dar um novo rumo na vida desses jovens e continuou a história com dez anos mais tarde, quando quase todos personagens do primeiro livro sobrevivem e, milagrosamente assumem novas características em suas vidas pessoais. Naturalmente, figuras fadadas ao fracasso, crime e prostituição seguem seus instintos naturais num cenário gótico e úmido, o qual Welsh descreve muito bem. As histórias se desenrolam em atos na Escócia, Inglaterra e Holanda, aonde cada personagem vai se enquadrando em um objetivo comum: a pornografia.

Diferente do primeiro livro, Sick Boy é o protagonista da vez, deixando o ex-amigo e traidor Rents em segundo plano. A idéia agora, além de reaver o dinheiro roubado por Rents, é se afundar numa indústria de sexo amador com ambicioso profissionalismo movido pela perversão. As drogas não ficam de fora, mas Welsh dessa vez explora um novo tipo de violência, em que a sacanagem é apenas a porta de entrada para o submundo dos filmes pornôs.

O livro é denso, detalhista, provocante e perturbador em certos momentos, o que foi uma tarefa difícil, mas não impossível, para adaptá-la para o teatro. Desde o dia 09 de fevereiro, no Vegas Club, em São Paulo. Eduardo Ruiz apresenta a obra de Welsh. Coube ao diretor Gustavo Machado a tarefa de criar uma atmosfera independente do cinema para essa turma dez anos depois. Com elenco afinado, o espetáculo — lançado na balada Vegas e agora ambientado no Studio SP da Vila Madalena — tem vida própria. Entre carreiras de cocaína, Sick Boy (o ator Sérgio Guizé) cuida de um boteco. Spud (papel de Fábio Ock) se vê impotente diante do mundo. Franco (Guilherme Lopes), recém-saído da prisão, procura um rumo. Renton (Pablo Sgarbi) tenta outra vez se dar bem. Outras figuras se interligam ao quarteto na produção de um filme pornô. É imperdível para os fãs do filme e para quem não tem medo de observar a decadência do ser humano em estado avançado.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Intolerante Adorável


José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, faz jus à sua fama de diretor competente e inovador, realçando a qualidade de outros profissionais que ajudaram a transformar a Globo no que ela é hoje: líder absoluta de audiência no território nacional. Em um livro encantador, figuras como o lendário diretor Walter Clark, ex-aliado de Boni, são retratadas como pilares importantíssimos na construção do império de comunicação, deixando de lado as rixas pessoais que teriam levado à sua saída da Rede Globo em 1977. Aliás, gentileza é que não falta nas palavras do autor. Desde seus  braços direitos, como o diretor Daniel Filho;  Joe Wallach, o ex-representante do grupo americano Time-Life e então superintendente de Administração; Jose Ulisses Arce, superintendente de Comercialização; e Armando Nogueira, diretor de jornalismo. Além, é claro, de Roberto Marinho, mencionado sempre como "Dr. Roberto", o que dá um tom superior e quase de “mago” ao dono da empresa.

Quem espera pelas fofocas, se desencanta logo nas primeiras páginas, quando o próprio autor adverte que suas memórias são reflexões mais para a curiosidade sobre as empresas e pessoas com quem trabalhou do que a vida particular de figuras notórias da televisão brasileira. Isso, entretanto, não abala a estrutura de um livro muito bem escrito, rico em detalhes e fatos curiosos de um homem que deu enredo ao próprio destino, apostando em seu talento e ambição. Não é de se estranhar, que ele enfatize tanto um dos seus mantras: “Quem quer ser criativo, não pode ter medo de errar. Quem quer ser eficiente, não pode tolerar o erro.”

As quase quinhentas páginas do Livro do Boni são capítulo à parte para quem acompanhou o nascimento da televisão brasileira. Boni não poupa nuances a quem ele classifica de talentos indispensáveis para a consolidação da TV Globo como uma central de produção e não apenas transmissora de programas. Alguns deles, como Abelardo Barbosa, o Chacrinha, compartilha de passagens no limbo e no céu, por conta de seus caprichos excêntricos. Em um deles, em particular, Boni explica a quase tragédia quando Chacrinha, recém-contratado, havia criado um concurso do cão mais pulguento do brasil. O concurso, segundo o próprio apresentador, tinha um apelo de conquistar as classes mais baixas e popularizar o programa, algo que Chacrinha vinha fazendo com grande liberdade na TV Tupi. Acontece que, segundo Boni, o cachorro vencedor tinha aproximadamente sete mil pulgas (lamento, mas nem o autor explica como eles contaram as pulgas) e quase interditou os poucos estúdios da emissora, que ainda rodavam com recursos parcos de uma empresa que quase tinha chegado à falência em 1967.

Aliás, antes de se tonar um exemplo para as outras emissoras, a Rede Globo, amargou anos de aperto financeiro, quando mal tinha condições de pagar seus próprios artistas e funcionários. O salvador da pátria, novela que levaria anos ainda para ser produzida, foi Silvio Santos, que desembolsou os próprios recursos para ajudar a emissora que seria a pedra em seu sapato anos mais tarde.

O livro do Boni se desenrola com uma fluidez impressionante por essas e muitas outras histórias. O leitor fica preso a um texto leve narrado por um “intolerante adorável” que saiu da cidade de Osasco para se tornar um dos ícones da TV Brasileira.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Agência Publicitária


Triiimmm, Triimmm


___ Gomes Baldanuca & Platini VSF8, bom dia.


___ Bom dia, é da agência publicitária?



___ Sim senhor, Gomes Bladanuca & Platinni VG8. Deseja falar com quem?

___ Ual, tem certeza que é da agência de publicidade, pois com um nome criativo desses, você deve ter levado meses para decorar?

___ NÃO SENHOR (enfaticamente), são os nomes dos diretores e fundadores da empresa, os quais são RECONHECIDÍSSIMOS nos mercado publicitário e, quem tem um mínimo de leitura regular de jornais, já deve ter lido o nome deles.

___É verdade, mas pra mim o Platini estava ligado ainda a UEFA depois de se aposentar do futebol. Agência publicitária é uma novidade?

___Quem???

___Deixa pra lá, eu acho que ambos precisamos ler mais o jornal. Quero falar com o senhor Marcos Roberto Sibini. Ah, desculpe, GERENTE Marcos Roberto Sibini.

___Marcos Sibini? O senhor poderia me informar o setor?

___ Lindinha, não quero tomar seu tempo e, o que é pior ainda, o meu. Portanto, da próxima vez que você se gabar sobre seus conhecimentos de corporativismo interno diante de estranhos e possíveis clientes que ligam para a sua agência, por favor, se informe melhor sobre os superiores de cada setor e pare de puxar somente o saco dos diretores.

__SENHOR, não estou recebendo nenhum memorando me informando de funcionário mudando de setor aqui.

__Ah tá, eu sou obrigado agora ouvir a sua mesopotâmica história sobre o assassinato da língua portuguesa pelo perverso gerundismo.

___HÃ?

___ Nada, por favor, me transfira para o setor de quem cuida da tecnologia. Tenho certeza que alguém lá conhece o Marquinhos.

___ AAAAAhhhhh, o Marquinhos. Eu sei quem é agora!

__ Ah, o Marquinhos? -  irritado __Me desculpe, eu não sabia que a brutal diferença entre  Marcos e Marquinhos pudesse provocar um lapso em sua memória. Isso, certamente, são seqüelas da revista Caras, Xotota.

__NOSSA! Como o senhor é boca suja.

__Escuta, Xoxota não é palavrão. Xoxota parece nome de tia velha. Imagine você dizendo para suas amigas: “Vamos comer bolinho de chuva na casa da tia Xoxota”.

__Minha tia não cham...

__Não me interessa o nome da sua tia, me passa pelo amor de Deus para o Marcos Sibini, Marquinhos ou o Gostosão que não nunca olha para você porque sua bunda é flácida.

__Ah, agora o senhor já quer falar com três pessoas?
Me imagino nesse momento pelado sobre a mesa da recepcionista fazendo um girocóptero com meu pinto na cara dela.

__ Olha, esqueça, transmita o recado para o MARQUINHOS que o Léo ligou e para ele retornar a ligação, ok.

___ Léo de onde?

___Amigo dele.

___Amigo de onde?

___O professor de jazz.

___O Marquinhos faz jazz? (Se segurando para não rir)

___Faz sim, com seu pai às terças.
Silêncio!

___Meu pai não tem as pernas, perdeu as duas no ano passado por conta da diabete.

Nesse momento sinto uma vontade imensa de beijar a bunda de um macaco contaminado com o vírus ebola.

___Olha, desculpe, eu não queria chegar a esse ponto, mas é que você me deixou nervoso e deixa muito a desejar na sua função.
Soluços abafados do outro lado da linha.

___Eu não queria ofender o seu pai ou a sua família, me sinto péssimo com o desenrolar dessa conversa. Podemos começar de novo?
Secando as lágrimas e a voz embargada.

___Sim, desculpe senhor, com quem o senhor deseja falar?

___Bom dia, eu gostaria de falar com o senhor Marcos Roberto Sibini.

__Hum, e o senhor poderia me informar o setor?

TU, TU, TU, TU...

Leonardo Carvalho - Outubro 2010

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

JANETE


Janete é uma pessoa simpática, meiga, reservada e charmosa. Mas acha que tem um defeito. Se é que podemos levar em conta isso como um defeito. É gorda. Não como qualquer gorda. É espaçosa, cheinha, oval, preguiçosa. Uma gorda de categoria. A gula desordenada e a falta de movimento resultaram em pneus, apelidos maldosos e a solidão. Ah, sim, ela ficou sozinha. Apesar dos 36 anos, ela ainda sonha com o príncipe magro encantado. (Chega de relaxado nessa história) Forte, alto, boa pinta, estereótipo de novela.


Na estrada, 140 quilômetros no velocímetro e 102 kg no assento, o vento balança seu cabelos e corta a fumaça do cigarro. Curvas perigosas, freadas bruscas e pneus patinam no asfalto quente da rodovia. Janete tem pressa. Treme e traga com compulsão. Fechadas e xingamentos. Ela está nervosa. Afinal, foram 22 dias em um inferno, segundo ela própria define. Um Spa no lado inabitável de Piracicaba. Com muitas árvores (não frutíferas), diversos pássaros (espécies raras), piscina (só para ginástica), aulas de yoga, aeróbica, musculação, acompanhamento psicológico e 1200 calorias por dia. Depois das 1.200 calorias confesso que ela mais foi ao psicólogo. Ninguém é de ferro.

Depois da internação, finalmente está na rua. De volta à liberdade. Está de volta com menos 10 dos 40 quilos recomendados. Não faz mal, ela afinal se esforçou. Apesar de ter quase extinto uma boa parte da fauna em um ato desesperado. Lembranças do confinamento, só da tortura e um livro: “Hoje eu acordei gorda”. Suas lembranças geram raiva que refletem na direção perigosa. Como uma predadora atrás da presa ela rastreia enquanto dirige: uma loja de conveniência, pelo amor de Deus.

Logo, depois de uma curva que quase capota ela vê o oásis. Não há tempo nem de reduzir. Desce do carro e entra decida na loja. Desmancha violentamente uma embalagem de chocolate e ocupa os braços com milhares de calorias. Escolhe a esmo. Está cega de ansiedade. Surpreende o atendente e não repara nas pessoas que olham sua gula descontrolada. Respira e esbraveja alguns palavrões. A maioria deles para os controladores da gordura, responsáveis pelo seu tratamento na clínica (perdão, confinamento), e para seu amigo Bráulio. O rapaz havia dito há dias que Janete precisava decidir perder peso. Falou de vantagens, iludiu com desejos, e extrapolou nas histórias. Receosa, se internou e deu no deu. Mais fome e agora também tinha descoberto uma fúria dentro dela. Pensava em talvez estrangular, esfaquear, fuzilar e todos os maus que podem ser cometidos contra um ser humano. Bráulio seria a vítima.

Na saída da loja, com dez quilos a menos, mas que seriam rapidamente recuperados, ela ouve um fiu-fiu. Pára. Primeiro ignora, afinal não estava tão atraente assim. Dá um passo, e novamente um fiu, fiu. Olha para trás, retorna um pouco, joga os chocolates no chão, e procura de seu galanteador. Não ouvia uma cantada desde a adolescência, quando tinha cintura. Se sente
atraente, depois de muitos anos, se sente gostosa. A sensação de segurança faz ela fazer seu olhar de novela. Charme. Volta, dá uma rápida espiada pelas prateleiras, e não encontra ninguém. Frustrada se dirige novamente à porta. Mais uma vez o sensual fiu-fiu. Dessa vez ela identifica. Um macaquinho eletrônico era o responsável pelas cantadas. O sensor de movimento do brinquedo fazia o desejado ruído. Ela olha para o aparelho eletrônico e sente desdém. Suas mãos tremem e sua ação é ofensiva. Joga o macaco no chão e sapateia em cima dele. Sai da loja sob desaforos do gerente e vê um adesivo colado no vidro ao lado do seu carro. “Perca peso. Pergunte-me como?”. Abre o porta-malas, pega a chave de roda, quebra o vidro e sai em disparada. Dois minutos. Volta e compra o macaco.

Dizem que hoje ela desistiu de emagrecer ou procurar um namorado. Está mais feliz do que nunca e mal sai de casa. Sua única preocupação é com o macaquinho, que agora faz fiu- fiu 24 horas por dia, assiste à novela e é testemunha dos strip-tease mais exóticos já presenciados em um conto. Os vizinhos já protestaram pelo barulho, mas Janete não liga. A única coisa de
Que ela quer saber é das pilhas.


Leonardo Carvalho – Setembro 2002