Aurélio era um homem comum. O tipo de homem habituado aos
costumes da vida de casado e aos compromissos familiares. Pai de dois filhos,
esposo devoto, contador autônomo, carro popular, hipoteca da casa, dívidas
sempre honradas, férias no Guarujá e uma rotina que poderia ser classificada de
o sinônimo do tédio. Aurélio era assim: prático, sem emoções.
Sua esposa, Augusta era uma santa, como ela mesmo costumava
de pensar de si mesmo. Agradecia a Deus todas as noites pelo marido honrado que
tinha e os lindos filhos que não paravam de crescer. Ambos com a cara do pai.
Um orgulho para ambos. Dona de casa dedicada. Passava os dias hipnotizada pelos
programas vespertinos. Ouvia com invejável concentração cada nova receita de
bolos e pratos bem elaborados que os apresentadores construíam com ajuda de
chefs renomados e soberbos. Tudo pela família.
Quase todas as noites era uma nova aventura sensitiva para os
filhos e o nobre marido, que saboreavam as mais sofisticadas receitas
disponíveis na televisão. Augusta costumava dizer com desenvoltura “essa Lula
recheada com shimeji é considerada uma iguaria da culinária japonesa.
Impressionante como tínhamos preconceitos incompreensíveis pelos fungos”. Augusta
gostava de agradar e impressionar. Afinal, tinha a família que sempre sonhara e
vivia seu conto de fadas pessoal de maneira modesta e feliz.
Com o passar dos anos, no entanto, Augusta sentiu que tinha
algo estranho no seu casamento. Aurélio perdera um pouco da timidez peculiar e
se mostrava mais animado do que de costume durante os jantares. “Papai está
pensando em entrar na academia, o que acham meninos?” Aurélia pensou que fosse
ter um AVC com a novidade tão repentina. “ACADEMIA? Mas você nunca foi disso,
Aurélio? Você está doente?” Sorridente, Aurélio expos a ideia. “Meu médico sempre
pediu que eu tomasse cuidado com minha taxa de colesterol, porque não dar um
jeito nela antes de começar a me preocupar.” Augusta quase surtou com a
disposição repentina, mas esperou irem para cama para conversar com mais privacidade
sobre o assunto.
“Aurélio, você está doente, meu bem?”, perguntou ela. “Para
com isso, pequena, quero só melhorar minha condição física para ter melhor
disposição no trabalho”, explicou ele enquanto folheava as últimas páginas de
um romance de James Patterson. “Não quero me preocupar, só isso”, lamentou ela,
virando para o lado e desejando que o marido não ficasse doente nunca. Afinal, Augusta
era dona de casa. Excelente, mas só sabia cuidar da família.
Mas as mudanças não pararam por aí. Aurélio planejou com
grande eficiência seus dias melhores. Passou a frequentar uma academia quase
que diariamente, sempre pelas manhãs, antes do trabalho. Ficou tão empolgado
com os resultados visíveis, que se motivou a pagar um personal trainer a ajudar
na construção de um corpo de aço. “Olha Augusta, minha camisas estão começando
a ficar justas nos braços”. Augusta, que nunca foi de reparar em homens
malhados, respondia com desdém o exibicionismo do marido. “AH”, suspirava ela
se concentrando na louça.
Aurélio era a empolgação em pessoa de shorts, tênis com
amortecimento, regata dry fit e ipod. Vivia pela nova vida e, sem vacilar,
lançou mais uma mudança radical em meio à sobremesa de creme brulee.
Especialidade das quintas-feiras. “Estava pensando em pintar meus cabelos. Esse
tipo de tintura que você utiliza serve para homens, pequena?”, indagou. “O que
é isso, Aurélio? Não acha que está indo longe demais?”, protestou ela. “Ué,
você sempre me disse que eu tinha uma mania quase repulsiva de ficar bebendo
cerveja e ver televisão. Estou querendo me cuidar. Isso é algum crime?”.
Augusta se calou e se retirou da mesa antes de terminar sua sobremesa. O pai se
encarregou das crianças enquanto ela foi para o quarto se preparar para dormir.
Aurélio entrou timidamente no quarto e viu a esposa aplicando uma mascara
facial noturna. Ao sentar ao lado
dela, lançou seu discurso. “O que é, pequena? Não gosta de ver seu marido em
forma, saudável e mais bonito?”. Cabisbaixa, Augusta olhou discretamente para
as mãos marido e as pegou com firmeza. “Estou, estou muito feliz, mas isso é
tão entranho vindo de você, Aurélio. Por Deus, você é contador e de repente tem
uma epifania de se tornar um atleta?” Aurélio bronqueou “Quer dizer que você
acha que minha profissão não me qualifica a fazer algo mais empolgante? Eu me
resumo a alguém que conta números o dia todo e se satisfaz em casa sentado na
frente da TV com uma cerveja?”. “NÃO, PELO AMOR DE DEUS. NÃO, AURÉLIO”, começou
a choramingar ela. “Então é só isso que eu devo ser? UM CONTADOR? UM MERO
CONTADOR PRA VOCÊ, ENTREGAR MEUS DIAS A ESSA ROTINA TEDIANDE ESPERANDO A
MORTE?”, enfatizou se levantando da cama. “AURÉLIO, POR FAVOR, PELO AMOR DE
DEUS. NÃO É ISSO QUE EU PENSO DE VOCÊ. POR FAVOR, ME PERDOA. EU QUERO QUE VOCÊ
SEJA FELIZ SENDO MAIS JOVEM, FAZENDO ESPORTE, POR FAVORRRR”, gaguejava Augusta,
abraçada as pernas do marido, enquanto as lágrimas manchavam sua calça
perfeitamente engomada pela dedicada senhora. “O que é isso, benzão? Levanta.
Senta aqui comigo. Passa um pouco desse creme em mim também. Não quero ficar um
velhote perto de uma mulher tão linda e jovem como você”, decretou. Augusta
sorriu discretamente e molhou os dedos no porte de creme e passou com
delicadeza em volta dos olhos vibrantes de Aurélio. Beijaram-se profundamente e
foram dormir. Afinal, não era sábado e não havia ocasião especial. Certos
costumes são difíceis de serem quebrados.
Os dias se passaram e Augusta tentou – veja bem, tentou – ser
uma esposa compreensiva. Organizou até uma gaveta para as roupas de ginástica
de Aurélio, que não paravam de crescer durante os meses. Em uma dessas
arrumações, Augusta encontrou algo que quase a fez realmente ter um AVC. Um
catálogo de modelos de cuecas. Cuecas caras, cuecas chiques, cuecas exclusivas.
Sob abdomens onde Augusta poderia esfregar uma calça jeans encardida. ‘Jesus, o
que é isso?’, pensou ela. Indo mais a
fundo, Augusta desenterrou mais um dos segredos de Aurélio. Fotografias de
homens musculosos, sarados, em forma e uma revista de como parecer com eles.
Augusta escondeu imediatamente o material do marido e fechou a gaveta com
força. Onde estava indo essa mudança?
Durante o jantar, Augusta tentou ser uma anfitriã eficiente.
Serviu à mesa, explicou o menu e quase, sem pedir, decantou o vinho. Aurélio percebeu
logo. “Tudo bem, pequena?”, disse ele. “Sim, sim, tudo ótimo. O seu jantar está
agradável?”, cortou ela com um sorriso cínico no rosto. Enquanto Aurélio esticava
as pernas no sofá e ligava a TV, Augusta se prontificou em fazer companhia.
Durante a apresentação do jornal da noite, Aurélia notou uma chamada do
apresentador: ‘NOVO TRATAMENTO DE BOTOX GARANTE RESULTADOS DIFINITIVOS E
INDOLOR PARA PACIENTES’. “Nossssaaaa, o que acha de fazer um botox para
melhorar essas linhas de expressão, heim Aurélio”. “Hum, talvez. Acho que sim,
vou começar a pensar no assunto.”, avaliou ele. “Quer dizer que você toparia?”,
indagou ela. “Sim, por que não?”. “ENNNTTTÃÃÃÃOOOOO, DEVO SUPOR QUE VOCÊ TAMBÉM
APOIA O CASAMENTO GAY?”, disse ela num tom elevado. “O que é isso, Augusta?”,
disse ele olhando os filhos brincando na sala de estar. “Você bebeu hoje?”,
grunhiu ele levantando um copo imaginário. “NÃÃÃÃOOOO, PORQUE ALGUÉM COM A
MENTE TÃO ABERTA A INOVAÇÕES NÃO DEVE SER CONTRA ISSO TAMBÉM?”, dramatizou
cruzando os braços enquanto afundava no sofá. “Acho que as pessoas têm o
direito de serem felizes, tá legal”, arrematou num tom pouco convidativo ao
embate.
No outro dia, Augusta não teve dúvidas quando o marido saiu
para trabalhar. Ligou imediatamente para a sua amiga-confidente-e-guru-particular.
“ROSINHA, AMIGA, ACHO QUE O AURÉLIO VIROU GAY!!!” disparou ela logo após ouvir
o clique do telefone. “Augusta, o que foi? Quem virou gay?”, indagou
curiosíssima. “O AURÉLIO, ROSINHA. O AURÉLIO MUDOU DE TIME”, gritou ela de volta.
“GAAAAYYYYY? GAY COMO, AUGUSTA?”, retrucou Rosinha como surpresa. “HORAS, GAY,
ROSINHA. BICHA, VIADO, QUEIMA-ROSCA, VIRA A MÃO, HOMOSSEXUAL, FÃ DE CHER,
BARBARA STREISAND, LISA MINELLI. GAY, ROSINHA. GAY! AÍ, JESUS”, descarregou ela
aos prantos.
Em minutos, Rosinha parou o sedan vermelho em frente à casa
da amiga exigindo detalhes e provas que levaram a Augusta a acreditar que
Aurélio agora brincava de colocar a cobra na toca. Após derramar a montanha de
material de homens seminus e musculosos, Augusta foi categórica. “AINDA ME
DISSE QUE VAI FAZER UM LIFTING. UM LIFTING! E MILITAR PELO CASAMENTO GAY.
AAAAAÍÍÍÍI´, AMIGA, MEU CASAMENTO ACABOU!”, desabafou Augusta, colocando mais
uma dose de uísque no copo. “Nossa, Gu, que coisa. Mas veja o ponto positivo
nessa história?”, falou a amiga. “O que?”, disse lamentando Augusta. “Ele tem
um gosto impecável para homens. David Backham, Jesus Luz, Brad Pitt. Nem eu
teria escolhas tão refinadas”. “Rosinha?”, chamou Augusta. “Quê, amiga?”,
enquanto olhava fixamente as revistas. “VAI TOMAR NO CU!”.
Rosinha passou a tarde ouvindo a derrapada mortal do
casamento da amiga. Sabia que aquilo tinha arruinado a vida dela e,
consequentemente, da família. Seria exposta aos mais maldosos comentários por
parte dos vizinhos, amigos e, sem dúvida alguma, da sua mãe, a qual nunca
morreu de amores por Aurélio. “Mamãe vai jogar isso pro resto da vida na minha
cara, Rosinha. Eu não irei suportar tamanha humilhação.”, disse chorosa
Augusta. “Calma, amiga, pensa nos meninos. Eles precisam de você agora.”,
sugeriu. “Os meninos, meu Deus, se não fosse por eles, já teria virado aquele
vidro de Ajax com as duas cartelas de rivotril que eu tenho no banheiro.”,
tranquilizou Augusta.
Ficou decidido entre elas que a separação seria discreta,
respeitosa e digna. Não haveria reconciliação diante de um fato repugnante como
esse. O casamento fora enterrado pela promiscuidade e mentiras de Aurélio. Não
havia solução, a não ser flagrar o delito com o suposto amante do marido, o
qual Augusta tinha calafrios só de imaginar. “Eu não vou aguentar isso, amiga.
Eu vou morrer na hora”, protestava Augusta. Mas Rosinha a convenceu que era a
melhor forma de conseguir uma prova irrefutável da infidelidade de Aurélio. O
porco traidor, como se referiam a ele agora.
Numa quinta-feira, quando Augusto costumava a se exercitar
até mais tarde no parque da cidade, Augusta decidiu que aquele seria o dia D.
Se arrumou como uma senhora recatada, perfumou-se e dirigiu até o trabalho do
marido, quando, às cinco horas, ele sairia para se esfregar em machos
musculosos e repulsivos em algum motel barato que a mente de Augusta a levava.
‘Será que não era a hora de uma manifestação divina a la novo Sodoma e Gomorra
nesse parque?’, delirava ela numa confusão de ódio e pena.
Às cinco horas em ponto, Aurélio se dirigiu ao seu treino
habitual no parque. Oito quilômetros, como ele se gabava de contar para os
filhos. ‘Velho sem vergonha’, se indignava ela. Depois de duas voltas completas
pelo parque, Augusto desapareceu em meio às árvores. Augusta entrou em
desespero. Havia parado seu carro a uma distância segura, de modo que pudesse
enxergar o marido quando voltasse ao carro e ficasse despercebida. Quando
arrumava a bolsa para sair a pé atrás do canalha, viu as luzes de freio do
carro de Aurélio se acenderem e sair rapidamente do estacionamento. Augusta não
vacilou e seguiu o carro a uma distância que não poderia perder de vista. ‘Hoje
eu te pego, senhor ATLETA’.
Quando o carro imbicava para entrar em um motel próximo ao
parque, Augusta viu o vulto do canalha que vinha transando com o marido. O
salafrário, destruidor de lares, já estava com ele dentro do carro e Augusta
não o havia notado. Agora era tarde. A farsa iria cair. Em poucos minutos. A
verdade será exposta. Aurélio, canalha, traidor, viado, malhador, velho sem
vergonha, será descoberto.
Antes de descer do carro e ir para o motel, uma última
recomendação. “Rosinha, alô? Peguei o filho da mãe. Está com outro dentro do
motel neste momento. Vou pegá-lo no pulo.”, resumiu Augusta. “Aí, AMIGA, QUERIA
ESTAR AÍ CONTIGO. VAI FUNDO. METE O PAU NAS BICHAS. OPA, QUER DIZER, ACABA COM
ESSES MENTIROSOS”, gritou empolgada do outro lado da linha, enquanto distraía
os gêmeos que se responsabilizou de cuidar durante a operação.
Munida de sua identidade de esposa traída, Augusta se dirigiu
a recepção e exigiu saber em qual quarto se encontrava o canalha do marido.
Estranhamente habituada com aquele tipo de confrontação, a atendente informou sem
vacilar o número do quarto e voltou ao teste de uma revista adolescente.
Era agora. Augusta, mulher santa, esposa devota, mãe
carinhosa prestes a se tornar uma heroína da família e justiceira dos bons
costumes. O marido, o salafrário, gay e mentiroso iria sofrer com a culpa pelo
resto da vida. Quando se aproximou da porta do quarto, em um corredor apertado,
de um antigo sobrado que havia se tornado em motel para fornicação alheia,
Augusta olhou a porta e a notou apenas encostada. A esposa traída foi empurrando
delicadamente a porta enquanto uma luz fraca num ambiente sombrio e abafado
revelavam, enfim, o algoz da relação de um casal que um dia havia sido feliz.
Augusta encontrou o interruptor e a claridade revelou algo
que mudou completamente a vida de Augusta. Todas suas dúvidas, medos,
incertezas e vergonhas naquele momento. “FERNANDA?”, indagou Augusta ao ver a
jovem assistente do marido cobrindo o busto com o lençol, enquanto o marido
saía do pequeno banheiro. “AUGUSTA, MEU DEUS!”, disse ele surpreso.
“EU...EU...AURÉLIO, VOCÊ ESTÁ TENDO UM CASO COM A FERNANDA?”, perguntou a
esposa. “Meu bem, desculpe, eu não queria que fosse assim. Mas depois que
comecei a malhar e a ficar em forma, a Fernanda se aproximou e uma coisa acabou
levando a outra. Eu não queria te magoar. Eu queria ser feliz, mais jovem, mais
vigoroso, como um ator ou um jogador de futebol. E a Fernanda me deu isso.
Infelizmente, você nem me tocava”, reclamou Aurélio envergonhado. “Quer dizer
que aquelas revistas eram modelos de homens que você queria ser? De uma
fantasia que você desejava?”, perguntou Augusta estupefata. “Sim, me desculpe.
Eu não quis te ferir.”, afirmou Aurélio.
Sem se preocupar com a cena constrangedora, Augusta fechou a
porta e foi direto para a casa de Rosinha, pegou os filhos e correu pra casa
sem dizer uma palavra sobre o ocorrido. Havia luz, Augusta era uma mulher comum
de novo. Era uma mulher traída, mas quem não era naqueles dias. O marido não
era gay, era um canalha. Isso ela suportava. Só não iria conseguir viver como
uma divorciada. Isso era a morte para Augusta.
Antes das 19h30, o jantar estava posto, as crianças na mesa e
o carro de Aurélio acabava de estacionar na garagem. Ele entrou, sentou à mesa
e antes que pudesse dizer qualquer coisa, a mulher disparou. “Você prefere purê
ou batatas fritas?”
Leonardo Carvalho – Maio de 2012
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